Secretaria-geral

Entrevista/Testemunho

1. Que imagem guarda V. Exa. da sua passagem pelo Ministério da Educação?

R: Frustração. Ao assumir funções, no Verão de 1968, levava um plano de acção claro e definido. Esse plano está publicado nas Actas da Câmara Corporativa (Pareceres sobre o IV Plano da Fomento), teve a aprovação da Assembleia Nacional e mereceu a concordância do Presidente do Conselho. Foi, aliás, para executar esse plano que fui chamado ao Governo. A mudança de Chefe de Governo, ocorrida pouco depois, retirou ao projecto a base de confiança política indispensável à sua realização.


2. Durante o seu mandato, qual a visão de V. Exa. para o Sistema Educativo?

R: Objectivos fundamentais: prioridade do ensino primário, mudança qualitativa nos métodos de ensino (que passaria a ser activo, isto é, aprender - trabalhando), e articulação entre o serviço da Escola e as exigências e perspectivas do desenvolvimento global europeu.
O sistema então em vigor era (e continua a ser) a trilogia pombalina: primário, secundário e superior. Previa a substituição por estoutro: ensino preparatório e ensino profissional, ambos obrigatórios para todos e levados até ao limite da capacidade de cada um.


3. Que reformas gostaria de ter promovido e não promoveu?

R: Todo o conjunto da mudança ficou prejudicado. Os resultados conseguidos limitaram-se a acções parcelares, que não colidiam com a estrutura instalada e o primado da Universidade. Entre as acções conseguidas, recordo o Inquérito ao Ensino Superior, a lei das carreiras docentes universitárias (aliás retida na Imprensa Nacional e publicada já depois do meu afastamento), a criação do Ensino Politécnico (que, com surpresa minha, não foi enviada para publicação no Diário do Governo, mas para discussão na Câmara Corporativa, onde tem por relator o Professor Leite Pinto, que estava inteiramente de acordo quanto à necessidade daquele novo nível de ensino), o melhoramento da situação do professorado primário e numerosas iniciativas de animação cultural das Escolas, entre as quais é justo recordar a realização da Corografia – Infantil de Portugal – um livro redigido por todos os alunos das escolas primárias, com a discrição ilustrada da aldeia em que viviam. Eram mais de cem volumes, e nada sei do paradeiro dessa obra que ilustrava a directiva -“saber é saber fazer”. Poderia citar dezenas de projectos de animação pedagógica (por exemplo, a obrigação de festas escolares durante os dias de exames, para desdramatizar essas épocas de terror escolar, mas tudo foram pormenores que em nada vieram atenuar a distância que separava o trabalho das escolas das exigências de um desenvolvimento previsível a médio prazo.


4. As reformas que na altura entendeu por bem promover depararam com que tipo de dificuldades?

R: Toda a inovação endurece a resistência, todo o implante de órgão novo desencadeia reacção. Neste caso, o obstáculo essencial foi a falta de adesão do novo chefe do Governo à Transformação projectada. O chefe do Governo contemplava o sistema educativo a partir da Universidade. Era um homem da Universidade, professor notável, antigo Reitor. Para ele, era a Universidade que produzia a elite, e essa elite era o fermento que faria nascer o pão. A força do hábito mantinha os espíritos agarrados à concepção de Pombal: ler e escrever para todos, humanidades preambulares (com uns rudimentos inevitáveis de cultura geral) para quem se destinasse à Universidade, e uma Universidade soberana, independente, que ensinava o que queria, sem qualquer correlação com as exigências ou as disponibilidades do mercado de trabalho. A admissão às Universidades dependia (e continua a depender) mais da capacidade económica das famílias que do mérito ou capacidade mental dos recrutados. Além dessa oposição essencial, tinha contra mim a força invencível das rotinas instaladas, as reservas obstinadas com que a Universidade encarava os projectos de um homem que não fazia parte dos seus quadros, a rivalidade entre os dois ramos do secundário (liceal e técnico), a agitação estudantil, à qual muita gente parecia dar mais importância que aos verdadeiros problemas que exigiam solução urgente, e, finalmente, a falta de tempo suficiente e de oportunidades permitidas para explicar e fazer compreender os objectivos da batalha que se pretendia travar. Podia continuar a enumeração, mas talvez a explicação seja mais simples: travei a batalha antes do tempo e não tive força nem tempo para a concluir.


5. Quais as mudanças significativas que se verificaram durante o mandato de V. Exa.?

R: Ano e meio é tempo escasso para mudanças significativas. Hoje, e apesar de todas as reservas, adiamentos, restrições de meios com que me debati, penso que foi útil a Abertura do Inquérito ao Ensino Superior, feito por uma comissão de professores jovens e de alunos notáveis; esse inquérito implicou instruções aos órgãos incumbidos da censura prévia à Imprensa para que não interviessem na livre discussão na imprensa dos problemas relacionados com o ensino. A discussão da Escola entrou assim nas preocupações quotidianas dos portugueses. O projecto do ensino politécnico teve consequências imprevistas. As reservas, mutilações e remendos que lhe introduziram transformaram-no numa espécie de ensino superior de segunda escolha. Mas, como esse grau de ensino era urgentemente necessário, aconteceu que as universidades (em particular as privadas) tenderam a politecnizar-se, com evidente prejuízo da missão que lhes pertence de sedes do saber puro e desinteressado. Outra reforma que ficou por concluir foi a do Magistério Primário, que passaria a ser constituído por 3 + 2 anos e habilitaria para o ensino de toda a fase da escolaridade preparatória, isto é, não profissionalizante. Na gaveta focou também o Plano Nacional de Educação permanente, que tinha por base a ideia de que a democratização do ensino não se limita ao direito de todos aprenderem; implica também o dever de todos ensinarem ou transmitirem o que sabem, e isso não durante os verdes anos da juventude ou da adolescência, mas pela vida inteira.


6. Que outro ou outros temas não contemplados nas perguntas anteriores gostaria de abordar?

R: Durante o tempo que permaneci no Governo nunca tive oportunidade de explicar os rumos do trabalho em curso. O Governo era uma equipa e, quando um ministro falava, entendia-se que exprimia as ideias do Governo. Por isso nunca tive luz verde para dizer o que queria fazer, onde queria chegar. Mas fi-lo mal saí do Governo, numa conferência que publiquei com o título “Aspirações e Contradições da Pedagogia Contemporânea” e mais tarde inseri no volume de ensaios Outras Maneiras de Ver. Nas Actas da Câmara Corporativa e nas páginas desse livro se explicam, com maior detença, as razões do quanto se fez e do quanto ficou por fazer.

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