Secretaria-geral

Entrevista/Testemunho

1. Que imagem guarda V. Exa. da sua passagem pelo Ministério da Educação?

A imagem mais forte que perdura no meu pensamento - já lá vão mais de trinta anos - é a do imenso orgulho por ter liderado uma inigualável equipa de obreiros da Reforma Educativa dos anos 70. Uma reforma global desde a educação pré-escolar até ao ensino superior e à formação profissional ao longo da vida. Todos eles(1) - desde o auxiliar mais modesto aos dirigentes e colaboradores mais qualificados - foram companheiros de um trabalho sem horas e de uma aventura plena de realizações, concretizadas até 1974 e projectadas de acordo com um Programa Estratégico aprovado até 1979 que as calendarizava e quantificava. O pensamento que dominava a Reforma está expresso no discurso da minha tomada de posse como Ministro da Educação Nacional: vale mais viver na inquietação do que morrer sonhando...

O percurso trilhado nessa Reforma, entre Janeiro de 1970 e Abril de 1974, está retratado, de forma sumária, em três livros, editados pelo Ministério da Educação Nacional: Educação... Caminhos de Liberdade (Janeiro, 1973); Democratização do Ensino – Sonho de Ontem, Lei de Hoje, Força de Amanhã (Dezembro, 1973); Meu Povo, Meu Pensamento (Abril, 1974).

Foi num clima de desafio ao estudo e ao engenho, em circunstâncias políticas algo adversas e numa luta contra o tempo, que foi possível iniciar a Reforma Educativa, logo em 1970, mercê de uma estratégia singular que a Câmara Corporativa reconheceu no seu Parecer n.º 50/X, de Março de 1973 sobre a lei de bases do sistema educativo, ao afirmar que a Reforma tem vindo a ser executada a título experimental - e isto em todos os graus de ensino - quer em consequência de despachos ministeriais, muitos deles ao abrigo das experiências pedagógicas, quer sobretudo através de diplomas legais e regulamentares.

Assim, foi possível, sem perda de tempo, conquistar o apoio inequívoco da larga maioria da sociedade portuguesa. Os professores, de uma rara dedicação e com quem dialogava intensamente percorrendo o Pais, foram os aliados imprescindíveis dessa Reforma, que abriu novos espaços de criação aos portugueses.

Por estas razões, a imagem de orgulho, pela liderança referida, associa-se ao sentimento profundo de gratidão pela dedicação e entusiasmo de colaboradores exemplares. Ainda hoje é com emoção que encontro muitos deles e que recordo os que já partiram...

Nesse percurso reformista, por vezes à beira de roturas ainda hoje desconhecidas, prevaleceu uma visão estratégica de qualificação dos portugueses, para o que, em 1971, se procedeu, em simultâneo, à reorganização global do Ministério da Educação Nacional, publicando-se uma Lei Orgânica inovadora(2) , que estruturou novos serviços, operacionais e de concepção e fortaleceu estruturas de estudos prospectivos, orgânica que constituiu uma marca inconfundível do Ministério e se inseriu na ambição de um Ministério do Futuro... São, aliás, bem conhecidas as notáveis personalidades, colaboradoras desses trabalhos, que desempenharam os mais elevados cargos na Democracia após-Abril, seja na vida política, económica, científica e social ou ligadas a estudos e planeamentos educativos, sociais e económicos(3) ...


2. Durante o seu mandato, qual a visão de V. Exa. para o Sistema Educativo?

Desde os meus tempos de aprendizagem política e científica nos anos 50, em Cambridge, com a consciência de que a educação-formação foi a base da reconstrução da Inglaterra, após a tragédia da segunda guerra mundial, que acreditei ser a educação-formação dos portugueses a base do renascimento do nosso País. Inquietava-me por Portugal não ter um sistema educativo com ambição para a qualificação dos portugueses, traduzido numa espécie de Magna Carta, orientada para a liberdade, a civilidade, o culto do mérito, da qualidade e da excelência - necessariamente em equilíbrio com a quantidade, perante atrasos insustentáveis - para a educação permanente, a observação científica e cultural, o desenvolvimento e a justiça social - vencendo desigualdades gritantes...

Por isso a visão dominante para o Sistema Educativo foi logo expressa, com fidelidade, num lema que era o símbolo da Reforma Educativa dos anos 70: Um Homem mais culto é um Homem mais livre.

E mais ainda, referindo de novo o meu discurso de posse como Ministro, sublinhei as palavras proféticas do filósofo e matemático inglês Whitehead, proferidas em 1916: Uma Nação que não valoriza devidamente a inteligência está condenada...

Por isso, a grande tarefa da educação-formação e, consequentemente do Sistema Educativo era, parafraseando Aquilino Ribeiro, "descongelar a inteligência ignorada perdida nos ribeiros do interior" e, acrescentava eu, nas barracas dos subúrbios das grandes cidades...

Como consequência dessa visão que, ainda permanece, as Escolas e as Universidades são e serão Capelas Imperfeitas, sempre inacabadas, por se situarem na “vanguarda do pensamento”...

Como concretização desta inquietação foi aprovada, durante o meu mandato, em Agosto de 1973, a primeira Lei de Bases do Sistema Educativo, que lhe conferiu uma visão global, desde a educação pré-escolar - pela primeira vez integrada no sistema educativo - até ao ensino superior e à formação profissional. As inovações conceptuais mais arrojadas para aquele tempo foram a consagração em lei do direito à educação; da igualdade de oportunidades; do acesso pelo mérito; da liberdade do ensino; da extensão da escolaridade obrigatória até oito anos, desde logo gratuita, seguida por um ano de formação profissional para os que abandonariam o sistema educativo; da diversidade curricular e institucional... Mas nessa Lei também se não esqueceu o amor à Pátria e a universalidade do saber. Apesar da Lei de Bases só ter sido publicada em Julho de 1973, após um debate nacional de impacto singular na sociedade portuguesa e após agrestes controvérsias e profundas análises em diversos Fóruns, na Câmara Corporativa e na Assembleia Nacional, a Reforma Educativa, como já disse anteriormente, estava em acelerada marcha desde Janeiro de 1970.

A este respeito, o parecer da Câmara Corporativa, de Março de 1973, subscrito por procuradores do mais elevado mérito na vida portuguesa antes e pós-Abril, cita a título explicativo, "o enorme leque de acções de execução da Reforma que nos dispensamos de evidenciar, abrangendo a educação pré-escolar, o ensino primário e a reconversão dos regentes escolares, a coeducação no ensino primário e no ciclo preparatório, a expansão da telescola, a modernização do ensino secundário com evidência para o status social do ensino técnico-profissional, as reformas curriculares no ensino superior, a reestruturação de carreiras docentes, o reconhecimento da Universidade Católica, a reforma do Conservatório Nacional, a criação do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e do Emprego, etc.. Perante esta enumeração, o parecer salientava que estas medidas permitiam avaliar a extensão dos objectivos reformistas do Governo e a dimensão dos esforços que indiscutivelmente têm sido despendidos".

A este respeito, outras referências são feitas, por exemplo, em “A Construção Política da Educação”, de António Teodoro, publicada em 2001, onde são mencionadas medidas de grande simbolismo político-social como a concepção e curricula dos 3º e 4º anos experimentais do ciclo preparatório, integrando o ensino básico obrigatório e que constituiu uma inolvidável experiência e, bem assim, o decreto-lei de difícil aprovação que consagrou a expansão e diversificação do ensino superior.

Alberto Ralha, em “A Reforma Veiga Simão”, publicada em 2002, “Documenta n.º 6”, da Fundação das Universidades Portuguesas, aprofunda e interpreta o pensamento da Reforma Educativa, evidenciando outras iniciativas marcantes e pormenoriza o singular debate nacional sobre o novo projecto do sistema escolar e as linhas gerais do projecto do ensino superior, ocorrido em 1971.

Uma consulta ao espólio da Reforma Educativa, como por exemplo de publicações entre as quais os boletins oficiais do Ministério da Educação, publicados entre 1970 e 1973, dá conta de diplomas legais que vão desde a acção social escolar, à administração escolar, aos assuntos culturais, à educação permanente, aos ensinos básico, secundário e superior, à juventude e desporto, aos serviços centrais e à Junta Nacional da Educação.

Ao correr da pena, merece especial referência a criação das novas universidades de Aveiro, Nova de Lisboa, do Minho e de Évora e de institutos politécnicos e escolas normais superiores, constituindo-se uma rede articulada essenciais não só ao desenvolvimento do nosso País e à modernização da Administração Pública mas, também, fomentando viveiros de formação de professores a vários níveis, essenciais ao já mencionado equilíbrio qualidade-quantidade. Esse equilíbrio mereceu sempre um cuidado especial como se reflecte no Programa Estratégico referido, concebido e calendarizado com objectivos e metas definidos até 1979. Acresce que o reconhecimento de largas dezenas de doutorados nas melhores universidades europeias e norte-americanas, o envio de dezenas de bolseiros para Universidades europeias e americanas, o novo modelo de estágio expandindo a acção de professores metodológicos, os cursos intensivos de verão para conclusão de cursos nas Universidades, constituíam parte integrante dum ambicioso Projecto de Formação de docentes, a todos os níveis.

Pena foi a sua interrupção em nome dos que o consideraram como de submissão ao capitalismo...

O modelo de sucesso prosseguido na Universidade de Lourenço Marques, com a participação dos melhores Centros de Saber do Mundo, servia de base com as devidas adaptações.

Acresce que essa ambição de equilíbrio foi desenvolvida nos Planos de Fomento e nos programas deles derivados, apoiada em trabalhos da OCDE e em acordos estabelecidos com o Governo Americano e outros resultantes das minhas visitas oficiais a Mrs. Margareth Thatcher, Ministra da Educação de Inglaterra e a M. Joseph Fontanet, Ministro da Educação Francês... O objectivo era completado por convites a eminentes professores estrangeiros, constituindo uma base promissora de transformações de vanguarda em várias instituições nacionais.

Mas, confesso-lhe que numa Reforma que se projectava entre 1970 e 1979, e tendo sofrido descontinuidades após o termo do exercício das minhas funções em 1974, muitos projectos ficaram por concluir, outros vieram a concretizar-se mais tarde, outros foram eliminados, outros deram origem a roturas - dada a erupção de utopias ou de ideologias sectárias, como aconteceu no caso lamentável da evolução do ensino técnico-profissional - outros caíram nas incertezas da anarquia em que caiu o que na prática era um Laboratório Bio-Sociológico. No entanto, justo é mencionar que alguns novos projectos deram origem a aberturas que merecem aplauso.

A Educação ganhava, dada a independência de pensamento que a deve caracterizar, uma “Comissão de Verdade” onde a humildade, a verdade e a assunção do real, se sobrepusesse ao dogmatismo e ao domínio do fictício.


3. Que reformas gostaria de ter promovido e não promoveu?

Como mencionei anteriormente, qualquer autêntica Reforma Educativa identificar-se-á sempre, em pensamento, com as Capelas Imperfeitas, ou seja, uma Reforma é e será sempre uma Obra inacabada. Acontece que em 1996 e 1997 coordenei, a pedido do Governo, a Comissão da Educação e Formação ao Longo da Vida, a qual apresentou na sala do Senado da Assembleia da República, os princípios duma Magna Carta da Educação para o Século XXI. Naquele período de 1970-1974 já emergiam no Mundo muitos princípios nela expressos e a que só a simbiose educação-formação, ainda não cumprida, poderia dar resposta... Educar desde o berço à sepultura...

Mas, regressando ao passado, como me pede, a minha amargura situa-se não apenas no que não fiz, mas também, infelizmente, no que estava programado e não foi feito ou foi exageradamente adiado e no que era necessário fazer...

Alberto Ralha, que dirigiu o Secretariado da Reforma Educativa, como referi anteriormente dá conta no seu trabalho das iniciativas em vias de concretização e dos diplomas concluídos, alguns já remetidos ao Presidente do Conselho, que requeriam aprovação urgente. Cito-lhe dois, o governo da Universidade e do ensino superior e a nova carreira docente dos professores, desde a educação pré-escolar até ao superior. A sua não concretização determinaria a minha demissão, o que alguns historiadores diziam estar iminente, fixando até a data em inícios de Maio... É outro assunto para as minhas memórias.

Mas, neste momento, dados os reflexos no futuro, reforçarei a ideia de que a Reforma Educativa dos anos 70 estava associada ao Programa Estratégico de Desenvolvimento Educacional, o qual era o instrumento financeiro, científico, técnico e logístico, essencial e decisivo à credibilidade do prosseguimento da Reforma. Esse Programa, já aprovado, era financeiramente suportado por Orçamentos definidos para o seu funcionamento e por Planos de Fomento, abrangendo o III Plano de Fomento, até 1973, e o IV Plano de Fomento (1974-1979). Algumas dotações próprias e vultosos apoios internacionais, já obtidos ,completavam esse modelo de financiamento.

O Programa mencionado compreendia diversos sub-programas, agrupados em torno de objectivos dominantes, claramente definidos e quantificados.

Infelizmente, as verbas previstas no IV Plano de Fomento para a Reforma Educativa foram, a partir de 1974, desviadas a favor de investimentos industriais, entre outros, realizados no pós-Abril, os quais se revelaram errados e não rentáveis, por incidirem em empreendimentos afectados negativa e drasticamente pelo choque petrolífero de 1973. Uma consequência infeliz das nacionalizações; um desperdício inglório, de cerca de dez milhares de milhões de euros... Uma infelicidade de difícil compreensão. Um prejuízo para o progresso da educação.

Ao correr da pena e no que respeita a componentes do sistema educativo, suponho satisfazer com objectividade o seu pedido, se lhe seleccionar quatro projectos que ainda hoje estão longe de estarem suficientemente realizados, no quadro da vida digna de ser vivida que ambicionamos para o cidadão português.

São eles:

    * a educação pré-escolar, que devia ser obrigatória;
    * o fortalecimento e flexibilização de membranas osmóticas tecnológicas e culturais entre a Escola, a Universidade e as Empresas, designadamente as criadoras de bens transaccionáveis e de bens culturais;
    * o fortalecimento do ensino particular, ampliando os acordos de associação, num quadro de potencialidades inovadoras, mas satisfazendo a evolução dos indicadores de qualidade das escolas públicas;
    * o regresso a Portugal de talentos portugueses e estrangeiros, mobilizando-os para a criação de nichos do futuro essenciais à Riqueza da Nação Portuguesa, associada a uma maior justiça distributiva.


Enfim, passados trinta anos, apesar de reais progressos verificados no âmbito educativo, continua por realizar e permanece como desafio às novas gerações, a qualificação dos portugueses para a sociedade do conhecimento, ou seja, a construção de um Portugal mais competitivo, mais atractivo e mais coeso na justiça social. Revolto-me quando projecções da OCDE afirmam que, ao ritmo em que andamos só em 2050 atingiremos indicadores quantitativos e qualitativos idênticos aos da média da União Europeia. Mas onde estarão nessa altura a maioria dos países da UE-25?

A inquietação de que falei logo de início permanece, embora a esperança não deva morrer e, como diz o Poeta e Amigo Gedeão, vamos fazer com que o sonho comande a vida...


4. As reformas que na altura entendeu por bem promover depararam com que tipo de dificuldades?

As dificuldades, e foram muitas, têm de ser entendidas no quadro das circunstâncias políticas prevalecentes, donde emergia uma conflitualidade inevitável entre a ala liberal do regime, a da mudança e a ala conservadora, a da defesa do status quo.

Porém, sempre adorei vencer obstáculos... dão sol à vida. Mas a finalidade deste texto não é fazer essa análise e por isso perdoe-me em me refugiar em juízos de valor que não são formulados por mim, mas por personalidades de elevada independência cívica. Por eles, de certo, se conclui a dimensão dessas dificuldades.

Por exemplo, Rómulo de Carvalho, em História do Ensino em Portugal, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1986, faz uma síntese da actividade do Ministério da Educação Nacional, no período de 1970 a 1974.

Nesse texto, o autor, distinto professor, com trabalhos de grande valia sobre o ensino, a investigação histórica e científica, escreve:


    "Veiga Simão buscou sempre o entendimento directo com as pessoas interessadas nas alterações e criações a que foi procedendo e não hesitou mesmo em solicitar a colaboração de individualidades que sabia não aplaudirem a doutrina oficial do Estado. Ele próprio, Veiga Simão, tomou atitudes e utilizou termos que seriam blasfémias políticas em dias passados e não distantes."


Após uma descrição de inovações introduzidas pela Reforma dos anos 70 nos diversos graus de ensino, Rómulo de Carvalho afirma: "Veiga Simão, nos seus discursos, descobre, sem ambiguidades ... as pressões a que o sujeitavam para que os seus projectos não avançassem". E cita afirmações públicas constantes dos discursos do Ministro:


    "Não deixemos que a marcha iniciada possa ser travada por aqueles que têm o pavor da educação, de todos e para todos, da cultura que chegue a todos os lares, do progresso que reparta por todos e com mais justiça o rendimento nacional. Para além das ideologias a que cada um aderiu, devem sobrepor-se as imagens das crianças ávidas de escolas, dos jovens a quem devemos dar formação profissional actualizada, das inteligências que não podem ser perdidas."


A conflitualidade, para mim saudável mas para outros indesejada, pode, também, simbolizar-se na posição política por mim assumida, revelada no livro em memória do meu amigo Ministro Baltazar Rebelo de Sousa, da autoria de seu filho Marcelo, publicado em 1999:


    "No I Congresso da ANP, realizado em Tomar, em 6 de Maio de 1973 Veiga Simão aceitou ir falar, mas como Ministro, sobre o seu Ministério; fazendo questão em não aderir e não se pronunciando sobre as questões “quentes” do momento político. Mais, elogiando o patriotismo de gente da oposição e defendendo uma cultura ideologicamente não alinhada."


Ao citar estes dois exemplos, não é minha intenção pormenorizar ou isolar acontecimentos concretos que exemplificariam, e de que maneira, as dificuldades vividas e os graves conflitos que algumas medidas, por mim assumidas, provocaram no âmbito da governação, dando origem a três pedidos de demissão de Ministro - referenciados, aliás, na imprensa estrangeira - e que envolveram circunstâncias da maior delicadeza.

Porém, por amor à verdade e a mim próprio, não posso deixar de enfatizar que a Reforma Educativa, apesar de todas as vicissitudes, só foi possível mercê do apoio de Marcello Caetano...

Um pensamento complementar mas dominante na política educativa, prevaleceu na abertura que a Reforma imprimiu. Com conhecimento do Ministro, nunca permiti que informações de natureza política pudessem impedir contratos e nomeações de professores e funcionários no universo educativo. É que recordei sempre a minha posição em Coimbra nos anos 40 perante o afastamento injusto de personalidades científicas da vida nacional, algumas das quais regressaram, por minha iniciativa, às nossas Escolas e Universidades... É impossível citar todos os nomes, apenas mencionarei, por razões afectivas, alguns como Aurélio Quintanilha, a quem aliás já tinha aberto as portas da Universidade de Lourenço Marques; Mário Silva, meu mestre, que integrei no meu gabinete a dirigir o Museu da Ciência e da Técnica e Manuel Valadares que, em carta que guardo religiosamente, aceitou o meu convite para o seu regresso à Universidade e só o não concretizou por doença de sua mulher... E já agora refiro a carta expressiva de António Luís Gomes, exprimindo-me a sua gratidão pelas diligências por mim realizadas, ainda que infrutíferas, mas que fiz com total empenho, para o regresso de Ruy Luís Gomes...

Como pode concluir, não será difícil deduzir as dificuldades e as incompreensões que me rodeavam, ao nunca abandonar o espírito e a prática da Reforma, sendo que algumas foram do domínio público mas outras só poderão ser reveladas em tempo próprio, com objectividade que a transcrição do teor de cartas e de documentos oficiais permite.

Uma última reflexão é necessário acrescentar.

A guerra do Ultramar constituiu um obstáculo intransponível para a Reforma Educativa, a qual dominava as reivindicações e contestações, explicáveis pelas consequências na vida dos jovens e pela angústia permanente das famílias... Por isso, problemas de outra natureza surgiram, mesmo, a pretexto da abertura conferida pela Reforma. O agravamento da situação culminou com a publicação do livro Portugal e o Futuro, do General António de Spínola, ao qual dei a minha colaboração em termos referidos por Spínola e a revelar posteriormente, mas num quadro em que a publicação do livro mereceu o acordo de Marcello Caetano. O livro perspectivava uma solução política e não militar para uma guerra de treze anos, para a crise em que se vivia, só que infelizmente não proporcionou a mudança para uma era democrática que preservasse uma evolução digna do nosso passado, geradora de um futuro novo a que portugueses, africanos e timorenses tinham direito.

A minha entrevista dada no início de 1974 ao Manchester Guardian é um testemunho do significado que dava à Reforma Educativa, revelando de forma inequívoca, sem ambiguidades, o meu pensamento sobre o futuro que esperava ser breve e o papel da Educação na construção da Democracia. É uma entrevista em tempo e para o seu tempo, que as minhas memórias reproduzirão.


5. Quais as mudanças significativas que se verificaram durante o mandato de V. Exa.?

As suas perguntas amáveis continuam a ser acutilantes mas deparam, mais uma vez, na dificuldade em dar respostas que fariam de mim juiz em causa própria. Refugio-me, por isso, em citar o grande e saudoso mestre Orlando Ribeiro, que num artigo publicado no Diário de Notícias, em 15 de Julho de 1974, após o 25 de Abril, sintetizou desta forma a minha acção educativa:


    “Quem está habituado a calcorrear o país, surpreende-se de encontrar carrinhas, que trazem de lugares perdidos os meninos, a seguirem, em modestas vitórias, uma escolaridade prolongada agora por oito anos. Tive a honra de fazer parte da comissão que elaborou os programas dos últimos anos do ciclo preparatório - lufada de ar renovador onde se propõem, às crianças, a descoberta e a imaginação, em vez da memorização estéril e do receituário mais adequado para resolver problemas no exame. Pelo estudo de um neto, tenho acompanhado estas inovações que, em tantos anos de ensino, me convencera nunca se tornariam possíveis.

    Depois, veio a sementeira de universidades e escolas superiores, orientadas para a formação rápida de quadros, entre nós desoladoramente insuficientes, e de que qualquer país civilizado não pode prescindir. Promoveu-se largamente o fomento da investigação científica, a que hoje é possível associar os melhores alunos - esperança de renovação em tarefas esgotantes e onde, à experiência e às suas inestimáveis vantagens, se junta o indispensável contributo de ideias frescas e ousadas, que a inquietação e a instabilidade da juventude permitem produzir. Só é pena que não se tenha podido simplificar a organização, infelizmente entravada por papéis e, pela sua complexidade, incerta e atrasativa. Aqui há, ainda, muito que fazer, não basta dar dinheiro, é preciso saber quanto, com antecedência, e simplificar ao máximo a justificação do seu gasto”.


A entrevista já vai longa, pelo que nesta linha de pensamento, não cansarei os leitores com a transcrição de cartas de várias personalidades internacionais ou de outras ligadas à génese da Democracia portuguesa, referindo apenas Sá Carneiro, que para além das cartas particulares de apoio que me escreveu, disse numa entrevista concedida em 1972, mas só publicada em 1974, na Revista Flama, o seguinte:


    “Parece-me que, no sector da educação, o Governo se tem revelado efectivamente progressivo. É mesmo, para mim, o único sector em que isso tem acontecido. E é um sector fundamental, pois que o problema da educação e da cultura condiciona muito do nosso desenvolvimento, até político. Não creio, de modo algum, que seja o único, ou que seja sequer suficiente para que possamos prescindir, com base nele, de uma liberalização e democratização políticas. Mas creio que, juntamente com elas, é um ponto fundamental de desenvolvimento e, portanto, parece-me que representa um esforço sério e honesto, talvez mesmo o mais sério que até agora se tem efectuado, de conseguir uma autêntica, uma eficaz promoção cultural e educativa dos Portugueses.”


Como resulta do que disse anteriormente as transformações reais que a Reforma provocou foram muitas e mereceram juízos de valor saudavelmente polémicos. Orgulho-me, porém, de que para elas contribuiu o diálogo nacional que propus aos portugueses, os quais durante seis meses, se pronunciaram num debate único, lançado pelo Secretariado da Reforma Educativa, na minha dependência e coordenado por Alberto Ralha, sendo que nas minhas memórias constarão todos os seus membros. Marcelo Rebelo de Sousa, um deles, na XIII Conferência, denominada O Futuro de Portugal: Conhecimento e Competitividade e promovida pelo Semanário Económico, em Maio de 2000, afirmou:


    "Há que reconhecer este facto insólito: o último grande debate nacional sobre a reforma educativa como prioridade nacional, ocorreu em 1970, ainda em ditadura, pela mão do então ministro, José Veiga Simão. Debate realizado em contexto autoritário, em plena crise escolar, parcialmente funcionando como um desvio abcesso de fixação para uma contestação mais funda de outra natureza e que acabaria por se centrar dominantemente no ensino superior. Ainda assim, e por estranho que pareça, foi o último grande debate sobre educação em Portugal e as linhas, naquela altura definidas, dominaram a política de educação no nosso país nos últimos 30 anos."


Em pensamento solto e a terminar, direi ainda que ainda hoje me revejo nas entrevistas dadas em 1974 a Joaquim Letria, publicadas nos jornais Diário de Lisboa e Expresso, durante a minha visita a Londres, a convite do governo britânico, onde afirmei “quando se contestam as estruturas para uma melhoria do ensino, sou pela contestação estudantil” e ainda “a abertura de novas Universidades vem abrir possibilidades a jovens professores desprezados pelas Universidades tradicionais e outros que vivem no estrangeiro, de se imporem e colaborarem numa tarefa importante”.

Eis verdades de hoje e porventura dum amanhã que, infelizmente, me parece distante....


6. Que outro ou outros temas não contemplados nas perguntas anteriores gostaria de abordar?

“Educação”, no seu significado de origem educare, abrange formar, educar, instruir, ensinar, empreender, participar...

O Estado Novo nos anos quarenta pretendia educar os jovens através de comparações com a Primeira República, apresentando sucessos politicamente seleccionados. Para mim, essa atitude era deplorável, até porque os homens da Primeira República, mau grado erros reconhecidos, transmitiam-nos ideias generosas de solidariedade e ambição nacional, associadas à beleza da palavra e à ansiedade por uma vida nova e melhor. A Democracia que se quer sempre Nova, passados 30 anos, parece querer envelhecer precocemente, utilizando práticas antigas e fugindo aos desafios das análises e das terapêuticas perante atrasos que, como noutros países, só podem ser vencidos por saltos qualitativos.

Para atingir essa finalidade, está em causa uma Nova Escola; está em causa uma Nova Universidade; está em causa a Democracia participativa.

Daí que, visionando o futuro, a Qualificação dos Portugueses não pode deixar de contribuir para dar, nas próximas duas décadas, respostas mobilizadoras às seguintes questões:

    * Como pode a Educação - obedecendo a princípios de rigorosa avaliação do desempenho de todas as suas organizações e actividade - contribuir para que Portugal seja um dos países da Europa e do Mundo mais competitivos e atractivos e com maior coesão social?
    * Como pode a Educação libertar a sociedade da corrupção que esmaga os cidadãos livres, proporcionar e criar condições aos empresários para criar riqueza, fomentar o grau de empregabilidade dos trabalhadores e a justiça social, obrigar os políticos a cultivar a ética republicana que não é compatível com deploráveis promiscuidades em negócios de intermediação?
    * Como transformar a Escola e a Universidade, hoje imersas em problemas intra-muros, em Fóruns de construção do futuro?

 

NOTAS

(1) A colaboração de cada um deles será justamente evidenciada nas minhas memórias sobre Educação, abrangendo as áreas tuteladas pelo Ministério da Educação Nacional - educação-formação, cultura, ciência e desporto, - hoje desdobrado em três Ministérios e uma Secretaria de Estado autónoma na Presidência do Conselho de Ministros.

(2) A colaboração de insignes personalidades é referenciada nas memórias referidas em 1.

(3) Deixarei os seus nomes e referências a relatórios de grande qualidade nas memórias anteriormente referidas.

(4) Nas minhas memórias relatarei as dificuldades inesperadas no reconhecimento da Universidade Católica, a atitude correcta do Vaticano, do Cardeal Cerejeira, do Reitor da Universidade e os desafios que se colocavam perante a democratização do ensino. O apoio das figuras mais responsáveis da Igreja Católica à Reforma Educativa foi reconfortante.


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