Secretaria-geral

Entrevista / Testemunho

    Recordo o período da minha passagem pelo Ministério da Educação como um dos mais intensos da minha vida profissional. Ainda que de curta duração –escassos 7 meses, dos quais 2 em gestão - foi sem dúvida uma fase relevante e emocionante.

    O governo que integrei tomou posse na 2ª quinzena de Julho, dois meses antes do início do ano lectivo. Encontrei um problema urgente e que muitas vozes diziam não ter solução: colocar nas escolas os professores para o ano lectivo seguinte. A legislação em vigor (e que evidentemente não podia ser alterada em Julho) determinava que a ordem de colocação dos professores fosse definida exclusivamente pela antiguidade e pelo currículo. Com este enquadramento legislativo o  governo anterior tinha desencadeado os procedimentos para proceder à colocação dos professores através de um único concurso nacional.

    Os mecanismos estavam em curso e as primeiras fases tinham revelado problemas sérios, manifestados pelo facto de as listas de ordenação  e seriação dos docentes, publicadas já com um atraso significativo, terem gerado um elevadíssimo número de reclamações. O problema urgente, que era indispensável resolver de imediato, era a resposta a todas as reclamações. Apenas após a correcção da seriação e ordenação dos docentes seria possível colocar estes nas escolas. Para tal era ainda necessário que os docentes manifestassem as suas preferências por escolas, e que as escolas revelassem as respectivas necessidades. A última fase seria a compatibilização destas três peças: prioridades, preferências, necessidades das escolas.

    Estas fases foram tendo lugar, ainda que sempre com sobressalto - era a primeira vez que se fazia o concurso para a colocação simultânea de todos os professores nas escolas. Finalmente e após algumas decisões difíceis e controversas – em particular a contratação, já em Setembro, de uma nova empresa para redesenhar todo o programa para a terceira fase do concurso- foi possível chegar a bom porto e dar início ao ano lectivo ainda durante o mês de Setembro.

    Visto em retrospectiva a colocação dos professores nas escolas dificilmente pode ser olhado como um problema político de grande dimensão. Mas de facto foi assim que foi visto pelos portugueses na altura. A comunicação social e os comentadores políticos oficiais, sempre com dificuldades para ter assuntos em Agosto, desfrutaram e empolaram esta matéria a um ponto que tornava a realidade política portuguesa, se avaliada pelos jornais e pelos noticiários e comentários das televisões, totalmente incompreensível para qualquer político ou jornalista estrangeiro. A oposição ao governo, evidentemente, fez o seu papel e dramatizou o que pode.

    Uma última palavra sobre o concurso anual de colocação de professores. Com o enquadramento legal relativo à progressão na carreira dos professores que estava em vigor na altura, penso que a ideia de um único concurso nacional era boa: permitia  tornar a colocação de professores clara, transparente e justa.  Contratei, imediatamente em Outubro, um novo Director Geral de Recursos Humanos, com uma vasta capacidade de organização  e gestão,  mantive o apoio informático da empresa que contratara em Setembro e a história veio a demonstrar que devidamente implementado um concurso daquela envergadura podia decorrer sem quaisquer problemas.

    Assim, na minha opinião, o problema daquele sistema não decorria da respectiva complexidade e dimensão mas antes e apenas dos critérios que tinham sido estabelecidos e vertidos no estatuto da Carreira Docente para a ordenação e progressão na carreira dos professores. Efectivamente não estava previsto qualquer mecanismo de avaliação dos docentes por parte das escolas, das famílias, das comunidade. A ordenação e progressão era puramente burocrática e baseada em elementos documentais. Com aquele enquadramento legal, considerei e continuo convencida de que o concurso único, realizado a nível nacional e anualmente era a melhor resposta. A alteração no Estatuto da Carreira Docente, em particular com o objectivo de tornar a progressão na carreira dependente da avaliação do desempenho apresentava-se como uma tarefa indispensável e uma condição necessária para repensar a colocação de professores de forma útil.

    As circunstâncias que descrevi tornam claro que os primeiros dois meses de governo foram intensamente vividos, em ambiente de permanente exposição pública e pressão política. Neste período, como ocorre com frequência nas dificuldades, criei grandes amizades e desfrutei de grandes lealdades. Foi por isso um período emocionante, e extremamente rico.

    Descritas estas circunstâncias, que bem ou mal marcaram significativamente a minha actuação enquanto Ministra da Educação,  volto-me agora para a matéria substantiva deste testemunho: o sistema educativo português naqueles meses, a avaliação que fiz da sua situação e a direcção em que procurei modificá-lo.

    Na minha perspectiva o sistema educativo portugues sofria de dois males fundamentais (ainda que de gravidade diferente) e com soluções necessariamente correlacionadas. O primeiro e maior problema  era a ausência de uma cultura e prática generalizada de avaliação: avaliação dos alunos, dos professores, das escolas. O segundo problema era o excesso de centralismo e dirigismo por parte da máquina do Ministério, que conduzia a ums desconfiança muito grande do poder relativamente a todas as iniciativas  inovadoras e criativas das escolas, das associações de pais, da sociedade civil.

    Relativamente à avaliação dos estudantes, estava já prevista a introdução de exames nacionais no final do ensino básico para as disciplinas de Português e Matemática. Mantive a determinação de continuar este caminho e considero que deve ser prosseguido. No segundo ciclo, os exames nacionais de aferição que os alunos realizavam anonimamente passaram a ser identificados, de forma a permitir dar a conhecer os respectivo resultados aos docentes, às escolas e às famílias dos alunos se e quando estas o desejassem. Este simples facto – identificação dos alunos na prova- fundamental na minha opinião para promover a responsabilização dos diversos intervenientes no sistema educativo, gerou grande controvérsia e oposição.

    A avaliação dos professores tem duas dimensões: a avaliação na fase de contratação e a avaliação do desempenho da função. Relativamente à primeira destas dimensões, deve referir-se que o Ministério da Educação contratava professores formados numa grande diversidade de escolas que dependiam do Ministério do Ensino Superior. O sistema de contratação em vigor privilegiava os licenciados de escolas que atribuíssem notas elevadas, não tendo qualquer consideração pela qualidade ou nível de exigência dos cursos. Refira-se ainda que, mercê de correntes de pensamento que dominaram o panorama educativo português no final do século passado, a qualidade científica da formação dos docentes fora em muitas escolas totalmente subalternizada à qualidade puramente pedagógica: sinteticamente falando, o sistema em vigor não dava meios ao ministério para controlar minimamente a capacidade profissional dos docentes que contratava e o Estatuto da Carreira Docente em vigor incentivava a baixa qualidade. Parecia-me assim fundamental organizar exames nacionais de acesso à carreira docente cujos resultados pudessem funcionar como instrumentos de avaliação, não apenas para o Ministério da Educação enquanto entidade contratante, como também para as próprias escolas de formação de docentes.

    Para além disso apresentava-se como essencial a avaliação do desempenho dos professores, em particular pelas escolas e pelas famílias dos alunos. Tal como referi,  também nesta área era preciso alterar o Estatuto da Carreira Docente. Registo com prazer que o governo seguinte deu alguns passos nesta direcção.

    Relativamente à avaliação das escolas  existiam, em diversos serviços do Ministério, algumas iniciativas em curso que procurei continuar a promover: recolha de dados e produção de estatísticas por um lado, e concepção de um programa, que veio a ser disponibilizado na Internet e tornado acessível a todas as escolas em Janeiro de 2004,  que permitia a cada escola comparar o respectivo comportamento em  diversas variáveis com o comportamento de um grupo de referência comparável.

    Uma segunda dimensão da avaliação das escolas que foi desencadeada naqueles meses foi o início da implementação de um sistema de auto-avaliação. Para tal criou-se um  grupo de trabalho cujos trabalhos vieram a ser suspensos na mudança de Governo, com o que considero ter sido um prejuízo significativo para a possibilidade de melhoria do sistema educativo.

    O segundo pecado capital do sistema educativo português é o excessivo  centralismo e dirigismo do Ministério. A atitude inicial dos responsáveis face a qualquer inovação e manifestação de criatividade é sempre de suspeição. A diferença raramente é tolerada e nunca é apoiada. Os custos desta atitude são, na minha perspectiva, muito elevados, e empenhei-me sistematicamente em a contrariar. A expressão mais evidente desta mudança de política foi a celebração de um Contrato de Autonomia (o primeiro) com uma escola, a Escola da Ponte, que promove há mais de 30 anos uma experiência pedagógica inovadora, já avaliada com bons resultados e que continuava a ter uma situação semi-ilegal no enquadramento político-burocrático nacional.

    Relativamente aos programas e planos curriculares  do sistema educativo português, optei claramente pela respectiva estabilização. Estes tinham sofrido uma série  de reformas e contra-reformas nos últimos anos, em particular no 3ª ciclo e no ensino secundário, e considerei fundamental deixar funcionar o sistema durante alguns anos, para poder proceder à respectiva avaliação com base em resultados, e não em conjecturas. Isto apesar de, na minha opinião, diversos aspectos da última reforma que tinha tido lugar não concorrerem  para a melhoria da qualidade do sistema educativo. Em particular, a implementação das aulas de 90 minutos trouxera indivisibilidades e inflexibilidades aos planos curriculares que a meu ver degradavam  o sistema. As alterações nos planos de estudo do ensino secundário e a correspondente redução da carga lectiva no 12º ano pareciam-me também conduzir a uma deterioração dos hábitos de trabalho dos estudantes no último ano do ensino secundário, com consequências muito negativas na respectiva inserção na vida universitária. No entanto, conforme referi, optei por não fazer qualquer alteração adicional.

    No segundo ciclo, que não fora objecto de alterações significativas nos três últimos anos, parecia-me urgente reduzir o peso das disciplinas não curriculares ( de três por ano, Estudo Acompanhado, Direcção de Turma e  Área de Projecto para uma por ano, Estudo Acompanhado no 5ºano e Área de Projecto no 6º)  e reforçar os tempos lectivos das disciplinas de Português e Matemática.
    Vale a pena referir que vários dos aspectos do sistema educativo que encontrei me surpreenderam muito favoravelmente: as escolas eram, do ponto de vista físico,  de qualidade média muito superior à que a minha posição de lisboeta me permitira esperar –temos escolas lindíssimas pelo país fora. O nível de equipamento informático era de qualidade bastante elevada e o desporto escolar estava igualmente em vigorosa expansão, estes dois aspectos em grande medida devidos ao empenho da equipe ministerial anterior. Apesar do centralismo característico do estado Português em geral e do Ministério de Educação em particular, muitas escolas revelavam capacidades de  iniciativa e criatividade notáveis, reagindo às circunstâncias particulares da população que serviam com ofertas inovadoras.

    Antes de terminar, e porque este testemunho já vai longo, quero referir rapidamente dois aspectos que considerei surpreendentes, talvez devido à minha inexperiência da vida política: as relações que mantive com a Comunicação Social e com o Parlamento.
    Relativamente à Comunicação Social apercebi-me de que, em geral (sem prejuízo de algumas honrosas excepções) as televisões não permitem aos jornalistas trabalhar com um mínimo de seriedade. Só lhes interessa verdadeiramente o escândalo, e o escândalo imediato, rápido. Já nos jornais encontrei jornalistas empenhados em fazer seriamente o seu trabalho, em compreender o que estava em jogo, em estudar e conhecer os assuntos. Em suma, com interesse e até amor pela verdade. Infelizmente, mesmo estes bons profissionais não têm frequentemente controlo sobre os títulos das notícias, e é sabido até que ponto os títulos determinam a apreensão pelo público da essência das notícias e podem distorcer a verdade. Em qualquer caso, e apesar de o ambiente geral na comunicação social ser de grande antagonismo, recordo com consideração e até com estima várias jornalistas com quem me cruzei.

    As minhas relações com o Parlamento foram intensas, apesar de o período em que desempenhei as funções de Ministra da Educação ter sido relativamente curto. Efectivamente, fui cinco vezes ao Parlamento durante aqueles meses. Recordo em particular a discussão do Orçamento de Estado para a Educação, que ilustra claramente a forma como tipicamente decorriam os trabalhos dos parlamentares. Fiz uma apresentação resumida do Orçamento (que distribuíra aos deputados na véspera) e o presidente da sessão deu a palavra a cada grupo parlamentar por sua vez. Seguia-se um período de respostas e passava-se a outro grupo parlamentar. Foi muito curioso verificar que os  deputados de todos os grupos parlamentes da oposição começaram pela mesma questão, que aliás eu antecipara e a que portanto respondera na apresentação inicial. Respondi àquela questão – (dimensão da dotação orçamental para o ensino pré-primário) precisamente quatro vezes, aos deputados do Partido Socialista, do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda e do partido Os Verdes. Evidentemente que a resposta foi sempre a mesma, dado que a pergunta não variou.  O mesmo tipo de discussão teve lugar nas outras ocasiões em que fui ao Parlamento prestar esclarecimentos sobre a evolução da colocação dos docentes e tornou para mim claro que em geral os deputados trabalham (tinham preparado as perguntas) não para se esclarecerem, não para contribuírem para encontrar soluções para problemas que existam, mas apenas e somente para demonstrar aos seus colegas de bancada que fizeram o trabalho de casa. Não há qualquer expectativa de que daquele trabalho resulte uma ideia nova, uma proposta, uma sugestão ou uma crítica relevante para a solução. Nessa medida o trabalho é puramente formal. Esta incapacidade de fazer uma crítica justa, de contribuir para a solução dos problemas, o carácter estritamente ideológico da oposição foi a característica da vida política que mais me surpreendeu nesta passagem pelo governo.

    Do ponto de vista pessoal e familiar posso dizer que a passagem pelo Ministério da Educação foi enriquecedora: a adversidade fortalece os laços, e aquele foi um período adverso. Conheci e/ou estreitei relações com algumas pessoas, em particular membros do  meu gabinete, cuja amizade valorizo muitíssimo. Também me enganei na avaliação de algumas pessoas, mas isso melhorou a minha percepção da vida. Espero humidelmente ter convencido alguns dos que trabalharam comigo de que a melhoria do sistema educativo português requer um clima de maior exigência na avaliação dos resultados, e de promoção da autonomia, da diversidade e da liberdade dos diversos intervenientes no sistema.


    Lisboa, 5 de Janeiro de 2007


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