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1. Que imagem guarda V. Exa. da sua passagem pelo Ministério da Educação?
Guardo a imagem de um tempo fascinante feito de “mergulho” num Portugal real e profundo que só a Educação desvenda. Retenho a pulsação de um povo – e de uma juventude – que aposta no sistema educativo como passaporte para o futuro e garantia de mobilidade sócio-profissional. Acumulo memórias extraordinárias de exemplar dedicação e de humana generosidade a todos os escalões da administração educacional com a qual tive o privilégio de trabalhar. Conservo a infinita humildade do confronto “sofrido e quotidiano” entre a exiguidade de meios e a imensidão da tarefa educativa. 2. Durante o seu mandato, qual a visão de V. Exa. para o Sistema Educativo? A visão de um Sistema Educativo moderno, aberto, europeu, competitivo, virado para o futuro e preparado para acolher a aventura dos saberes. E ainda o sonho de um Sistema Educativo completamente “devolvido” às suas comunidades de pertença no qual a intervenção da administração estatal é reguladora, normativa e subsidiária da vontade e da acção directa dos actores e parceiros que, a nível do terreno, tomam sobre si a responsabilidade primeira pela condução dos destinos da Educação. 3. Que reformas gostaria de ter promovido e não promoveu? No contexto inexoravelmente complexo, socialmente plurifacetado e culturalmente denso que rodeia a escola do século XXI creio que a derradeira e definitiva reforma a promover é a da “meta-reforma”. Dito de outro modo, cada vez menos se esperará do Estado – e dos seus titulares – uma “política iluminista” ou a concepção de um “reformismo centralista”, esperando-se cada vez mais do Estado, em contrapartida, uma oferta inteligente de estímulos e de incentivos à inovação local e à criatividade de base participada. Esta atitude de meta-reforma será a condição de sustentabilidade de uma Educação enraízada nas comunidades e permanentemente virada para os desafios da auto-renovação. 4. As reformas que na altura entendeu por bem promover depararam com que tipo de dificuldades? Foram as dificuldades habituais da resistência à mudança e da relutância na perda de privilégios. Recordo, por exemplo, como foi difícil “regionalizar” o Ministério da Educação dotando-o de Direcções Regionais (5) equiparadas a Direcções Gerais e absorvendo uma parte significativa das competências que eram tradicionalmente detidas por departamentos centrais. Igualmente, tenho presente as enormes perplexidades que os primeiros passos da autonomia (escolar, politécnica ou universitária) suscitaram numa cultura de dependência e de subserviência perante o poder político. 5. Quais as mudanças significativas que se verificaram durante o mandato de V. Exa.? Não quero – nem posso – enunciar um elenco de mudanças que seria fastidioso nomear: regime de autonomias de escolas, das universidades e do ensino superior politécnico; reforma dos planos curriculares e programas de ensino; revisão do modelo de direcção, administração e gestão escolar; elaboração do primeiro estatuto do pessoal docente dos ensinos básico e secundário; expansão extraordinária e melhoria qualitativa do parque educativo; aprovação do primeiro programa de promoção do sucesso educativo (PIPSE); integração das escolas particulares e cooperativas na rede escolar; organização e dinamização do desporto escolar; lançamento do ensino profissional; criação da Universidade Aberta; instituição do ordenamento jurídico da formação de professores; criação efectiva das direcções regionais de educação; aprovação da Lei de Bases do Sistema Desportivo; regulamentação e apoio às associações de pais e encarregados de educação; aprovação das bases gerais da organização da educação artística; definição dos princípios que regem a educação de adultos; lançamento do Entreculturas; criação dos serviços de psicologia e orientação escolar; aprovação do programa Educação para Todos; e por aí fora. Mas, mais do que qualquer outra alteração creio que a mais significativa foi a mudança ocorrida ao nível de protagonistas. As comunidades educativas assumiram, desde a base, o appel de verdadeiro motor da inovação e da “reforma”. Escolas, Universidades, Institutos Politécnicos, professores, estudantes, pais, líderes e directores, sentiram-se contagiados pela alegria de realizar, cada um na sua esfera de intervenção própria, a melhoria da educação. No fundo, aprendi com os actores concretos do terreno que a efectivação da “reforma educativa” é, no essencial, um estado de espírito e um “milagre de animação” que faz com que as pessoas acreditem no seu poder para levar por diante o progresso da educação em cada centro educativo. 6. Que outro ou outros temas, não contemplados nas perguntas anteriores, gostaria de abordar ? Recentemente, num debate organizado pelo Conselho Nacional de Educação, realizado no quadro das comemorações dos 20 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo, tive ocasião de sugerir dez “pontos de aplicação” para uma nova geração de políticas públicas e para um aggiornamento nacional em torno da prioridade educativa e formativa no século XXI que reputo essenciais para cumprir Portugal. São eles: 1. Restaurar uma cultura de confiança e reabilitar um sentido de mobilização de base no sistema educativo (a Finlândia atribui os seus elevados resultados no PISA ao funcionamento de uma sociedade baseada no “trust in schools and teachers”). Uma “sociedade da desconfiança” – que vive na suspeita das suas instituições, e sobretudo no descrédito da escola e dos seus professores – não fará as reformas necessárias. Do mesmo passo, um sistema “desanimado” dificilmente libertará as energias interiores para motivar as lideranças e os agentes de mudança tão indispensáveis à alteração do “estado de coisas”. 2. Abandonar a ideia das mega-reformas, globais e legislativas (“big policy”), de génese e matriz centralizadas, enveredando, como alternativa, pela criação de condições (“enablers”) propícias à inovação institucional, descentralizada e sustentada, impulsionadas a partir da base da pirâmide educativa. Sustentar uma cultura de “evidence-based policies” que reduza as margens de experimentalismo inconsequente e aumente a qualidade e a confiabilidade das políticas públicas educativas. 3. Descentralizar decididamente e apostar na autonomia das comunidades educativas para levar por diante as responsabilidades fundamentais de gestão estratégica e operacional das instituições escolares. Tal desiderato implicará a multiplicação acelerada dos contratos de autonomia nos ensinos básico e secundário. Esse movimento descentralizador pressupõe também a delegação de muito mais missões e responsabilidades na legítima e idónea iniciativa social. Favorecer a definição de cartas de qualidade e de sucesso educativo em cada estabelecimento de ensino. Formar lideranças preparadas para impulsionar a mudança local e a regeneração de comunidades educativas fortes. 4. Reformular todo o sistema de autonomias universitária e politécnica num quádruplo sentido: reforma do sistema de governação no sentido de uma maior responsabilização perante a sociedade; alteração dos modos de financiamento por forma a ajustá-los ao padrão de retornos privados e públicos; modernização dos modelos de recrutamento, carreira e gestão de recursos humanos; flexibilização total das orgânicas concretas de cada instituição, cujos desenho e definição seriam devolvidos para a completa responsabilidade de cada comunidade educativa. Complementarmente, impõe-se criar incentivos à formação de redes de ensino superior de lógicas múltiplas – espacial, áreas de estudo, temas de investigação, prioridades de cooperação – por forma a reverter a fragmentação e o desperdício de recursos. Combater energicamente o elevado insucesso nos primeiros anos do ensino superior e dotar de competências pedagógicas o corpo docente no quadro da concretização das reformas decorrentes do Processo de Bolonha. Reforçar os mecanismos de regulação, controlo e garantia de qualidade por referência aos critérios do European Network of Quality Assurance. Estimular a criação de emprego qualificado em C&T sobretudo em contexto de estímulo à dinâmica e inovação empresariais. 5. Aprofundar o programa integrado de Novas Oportunidades para jovens e adultos, na linha do que vem sendo anunciado no sentido de vencer a atávica baixa qualificação da população portuguesa. Para os escalões jovens, importa multiplicar, revalorizar e tornar atractivas as vias profissionalizantes pós-escolaridade obrigatória segundo o modelo de parcerias alargadas que as escolas profissionais protagonizam com inegável sucesso. Para a certificação e formação massiças da população adulta haverá que inovar radicalmente na forma de relacionar saberes e experiência, nos modos de extrair aprendizagens das experiências tácitas de vida e dos locais de trabalho, nas formas de motivar a população adulta para ambicionar atingir novos patamares de qualificações e de conhecimentos. Afigura-se-nos, sobretudo, que ao invés de formalizar as aprendizagens informais se torna imperativo informalizar as aprendizagens formais, com o objectivo de “capacitar” os fracamente habilitados com competências – a auto-estima, a auto-regulação e a motivação – necessárias para conduzirem os seus processos autónomos de aprendizagem ao longo da vida. Incrementar as formas de aprendizagem em regime de alternância estendendo-os a todos os níveis educativos. 6. Prevenir e combater todas as formas de iliteracia, elevando decididamente a qualidade dos ciclos iniciais do ensino básico tendo em vista a aquisição efectiva das competências instrumentais da escrita, da leitura e da expressão oral. Desenvolver paralelamente o lugar e o valor das culturas matemáticas e científicas visando, conexamente, aumentar a procura de formações e de fileiras de índole científica e/ou tecnológica. Reabilitar, desde a educação pré-escolar o apreço pela cultura estética e o convívio com a criatividade artística e musical. Se Portugal continuar a descurar – e a perder o combate fundamental dos primeiros ciclos de educação – será impossível recuperar, nos níveis de escolaridade mais avançada, os saberes fundamentais que os alunos não aprendem na escolaridade básica. 7. Incrementar a penetração e uso efectivo das TIC no sistema educativo, em aliança com estratégias de mudança pedagógica e institucional, tendo em vista alcançar ganhos de eficácia, de eficiência e de produtividade do sistema educativo (provando que as TIC podem desencadear na educação-formação efeitos positivos e ganhos de produtividade semelhantes aos que provoca no seio de outras organizações, designadamente privadas). Fazer da escola o instrumento privilegiado de inclusão digital e de combate a novas formas de exclusão da sociedade da informação. Proporcionar a emergência de novas ecologias da aprendizagem e a difusão de cânones de saberes menos teóricos e mais baseados na acção. 8. Rever, em profundidade e em natureza, toda a formação de professores desde a formação inicial – já provadamente inadequada aos novos figurinos de escola – à formação permanente e ao longo da vida. Em especial, haverá que reponderar, em sede de formação inicial, a persistência numa orientação de “formação imediatamente pós-secundária”, voltando a contemplar alternativas de “formação sequencial” já amplamente testadas, com assinalável sucesso, quer no antigo sistema de Ciências Pedagógicas + Estágio Profissional, quer na chamada Profissionalização em Serviço. Recentrar a formação sobre as exigências concretas da profissão e da revalorização da função docente, nas dimensões do elenco de competências docentes requeridas para reabilitar a escola e a função educativa. 9. Definir e adoptar Quadros Europeu e Nacional de Competências como referencial de reorganização curricular e de viragem da educação-formação para objectivos de sociedade, de mercado e de afirmação cultural. Criar novo impulso à educação pela acção coligando definitivamente os saberes académicos e científicos aos saberes práticos e aplicados. Rever, em larga medida, o papel e a intervenção do Ministério da Educação reservando-os em essência para funções de regulação, financiamento, normalização, avaliação e inspecção, apostando concomitantemente numa larga devolução de papéis executivos “no terreno” (autarquias locais, iniciativa social e privada, comunidades educativas). 10. Prevenir e sancionar energicamente a “incivilidade” em ambiente escolar. Desenvolver a formação parental junto de todas e de cada uma das escolas dos ensinos básico e secundário como elemento fulcral de uma parceria activa escola-família. Revalorizar as éticas do esforço, da disciplina pessoal, do respeito pelos professores, e da colaboração em ambiente escolar, contemplando uma revisão profunda do estatuto do aluno no sentido de fomentar a sua responsabilidade pessoal e social e de equilibrar direitos e deveres de cidadania escolar. |