Secretaria-geral

Entrevista/Testemunho

1. Que imagem guarda V. Exa. da sua passagem pelo Ministério da Educação?

Dos quatro meses que estive à testa do Ministério da Educação e Cultura retenho três imagens.
A primeira - o país. Um povo que num movimento admirável derrubara o regime totalitário que há mais de 40 anos o oprimia, e depois se exprimira numa curta semana de confraternização. Mas que não estava preparado para realizar uma autêntica revolução, e se enredou na balbúrdia das reivindicações despropositadas e das vindictas lamentáveis - no “queremos tudo, já!”, em saneamentos selvagens e ocupações da propriedade alheia. Uma revolução só o é se a autoridade do Estado (com novos dirigentes) a orientar segundo um plano adequado à realidade nacional e que imponha a justiça. Para conseguir as transformações sociais e seus benefícios, no sentido de maior igualdade, primeiro há que transformar a economia, numa nova forma organizacional, subordinando-a ao interesse público; não se trata de estatizar, mas sim de dispor de vasto sector ao serviço do bem comum A democracia não se instaura num acto criador, resulta de um processo de democratização com respeito pelo princípio de que os conflitos se resolvem no regular funcionamento institucional, pelo qual a cidadania vai sendo plasmada - e não é na rua, não é pela violência que alcançaremos a desejada meta. Proliferaram as greves, não já do operariado mas sim das classes médias, quando só pela disciplina no trabalho se poderia chegar à socialização. Grupos activistas confundiam a hierarquia de funções com derrogação à igualdade na cidadania, e combatendo aquela instalavam a barafunda ineficaz. Combatiam também a existência de elites, quando em democracia têm um papel fundamental no desenvolvimento económico e no progresso cultural, e logo na formação de uma sociedade melhor.

Ora não havia forças políticas organizadas para a democracia, o país fragmentou-se em acções dispersas com o fascínio da destruição ou na ânsia de poder de alguns movimentos, esses organizados, com intenções totalitárias. Com a bandeira de socialismo fizeram-se espoliações, e não nacionalizações a sério (salvo pequeno número de casos), sem que os trabalhadores da banca e seguros, da grande indústria, dos serviços públicos, os operários e demais trabalhadores tivessem formação para gerir racionalmente as empresas, e sem se aperceberem de que não podiam dispensar quadros bem preparados. Havia, sem dúvida, que desfascizar os quadros da alta administração, de instituições públicas e de certas unidades empresariais; o Ministério da Justiça não soube porém promulgar lei eficaz mas justa, que não admitisse arbitrariedades mas não fechasse os olhos a actuações graves no antigo regime.

Segunda imagem - a governação. Os Governos provisórios, por o serem mas não só, careciam de autoridade. Sem dúvida contaram com alguns ministros de alto valor, como o Coronel Firmino Miguel, os economistas Silva Lopes e Rui Vilar. Mas a descolonização (chave de tanta coisa) não era da sua alçada - Spínola reservava-a para si. O MFA controlava tudo, e era o seu programa que tinha de ser aplicado -paradoxalmente manteve-se em vigor a constituição salazarista; essa "vanguarda militar" chegou a opor o seu veto a certos ministros, embora a oposição encontrada o levasse a desistir por vezes. Também só parcialmente eram da alçada do Ministério a organização e acção das Forças Armadas, o Ministro da Defesa não dispunha da plenitude de poder de que devia dispor. As Forças de Segurança ( Polícia e Guarda Republicana ) não eram instrumento adequado à acção governamental, dado o mau ambiente que as rodeava por terem  servido a repressão no regime deposto.

As reuniões do Conselho de Ministros começavam pelas 15 h e prolongavam-se pela noite fora - até às 5 h da manhã, por vezes; sem proveito, com falia de produtivida­de. Perdiam-se na análise casuística, raro havia documentação preparada, nunca foram submetidas atas (nem pelos ministros assinadas), mau grado â boa vontade e diligência do major Vítor Alves, que secretariava. Entendemos que devíamos apresentar o programa do nosso ministério, e assim fizemos; com este exemplo suscitámos a resolução de que todos os ministérios apresentassem os seus programas, o que foi feito (nem sempre com grande proveito, diga-se). Por outro lado, tínhamos de nos pronunciar sobre os múltiplos casos da situação de empresas e organizações, incumbência difícil por se tratar de cada caso de per si, e perda de tempo. Propusemos que os economistas traçassem um quadro geral dos problemas económicos e os casos fossem depois resolvidos em cada ministério. Apresentámos mesmo uma exposição de conjunto sobre essa problemática, e assim se aprovou a criação de uma Comissão, presidida por Melo Antunes, que veio a elaborar esse documento fundamental ( também sem grande resultado ).

A governação não pôde desenrolar-se sem sobressaltos e mudanças de rumo. Spínola, chefe militar de prestígio, pretendia dirigir a política com alguma ingenuidade, não sabendo bem escolher as forças em que se devia apoiar a fim de criar as condições para a construção da democracia. Por outro lado, correntes políticas de esquerda ( não necessariamente democrática ) consideravam o general como um obstáculo ao seu controle do poder e às transformações por que ansiavam. No 28 de Setembro Spínola apareceu ligado à direita revanchista e alienou mesmo os democratas sinceros. Na reunião do Conselho a que presidiu tratou os ministros como garotos a que administrava uma repreensão; o que provocou da nossa parte uma firme reacção, culminando no pedido de demissão, que foi aceite (mas no fim o general cumprimentou-nos, salientando a nossa lealdade e desassombro). Como afinal Spínola é que abandonou a presidência, continuámos no Ministério. Mas os ventos iam mudar; à conjugação de tendências diferentes mas interessadas em construir o novo regime, sucedeu a progressiva subordinação a uma corrente totalitária, com a unidade sindical a seu serviço. Vasco Gonçalves mudou ( há quem pretenda que se revelou ) e as ameaças precipitaram-se. A presença na abertura do ano escolar na Academia Militar, com o desnorteante discurso do Primeiro Ministro, foi o nosso último acto na função ministerial. Em artigo na Vida Mundial em fins de Janeiro alertamos para o perigo que a marcha para a democracia corria - foi um dos primeiros e decisivos toques de sinos.

Terceira imagem - o Ministério da Educação e Cultura e a rede institucional de ensino, investigação e cultura.
Professor catedrático em Clermont-Ferrand, aí soubemos do 25 de Abril com júbilo mas inquietação, e nos meses de Maio e Junho fomos bombardeámos por convites e injunções para regressar a Portugal. Não fazia sentido abandonar os trabalhos escolares. Mas não resisti a escrever para o jornal República alguns artigos de análise dos acontecimentos e de indicação de caminhos que me parecia deviam ser trilhados. Em começos de Julho vim para Portugal de férias. Caí em plena crise governamental. Sabendo-me em Lisboa, os secretários de Estado da Educação e Cultura convidaram-me a ir ao Ministério discutir com eles os problemas cruciais. Não devia surpreender-me com o aspecto do Ministério, atendendo as notícias que me tinham chegado. Apesar disso, não pude deixar de me sentir perplexo, ao entrar naquele edifício da Cinco de Outubro em plena bagunça - até as escadas todas ocupadas, os gabinetes devassados; foi difícil encontrar um canto onde pudéssemos conversar. Orlando de Carvalho, Prostes da Fonseca, Maria de Lourdes Belchior, Avelãs Nunes inteiraram-me da situação, da impotência do ministro, das condições de governação - e de certo modo lançaram-me apelo a intervir. Dada a minha situação em França, não me convencia de que devesse trocar a boa capa pelo mau capelo. A minha posição política e cívica era importante para a governação: desde sempre defensor da democracia socialista (não da social--democracia), nunca filiado em partido político, em boas relações com todos, manifestara indefectivelmente uma firme isenção, que equilibrava o partidarismo de outros. Jovens oficiais tinham sido aliciados pelo meu livrinho sobre O Socialismo e o Futuro da Península Ibérica. Ora o Prof. António Brotas e o Coronel Almeida Bruno ( e outros ? ) inculcaram o meu nome ao general Spínola, e um convite formal colocou-me contra a parede. Aguardava-me uma tarefa mais do que difícil - impossível; e uma inflexão no rumo da minha carreira cheia de interrogações.

A primeira coisa a fazer era varrer o Ministério da multidão que o ocupava. Depois da tomada de posse para lá me dirigi, e peremptoriamente ordenei que a partir desse momento só fosse admitido o pessoal e aqueles que fossem convidados a lá ir ou mostrassem que tinham assuntos a tratar nos serviços centrais. Na manhã seguinte apresentei-me às 8h 40 - tudo em ordem, e não mais houve intrusões e confusão. Recebia um Ministério de que toda a alta administração ( e não só ) servira o anterior regime e a sua política fascista, "temperada" por uma vontade pseudo-reformista, que não podia conduzir a uma escola e instituições de democracia. Qualquer que fosse o seu valor pessoal, e até as suas ideias mais ou menos esclarecidas, não se podiam manter os dirigentes e havia que substituir quadros, numa lufada de ar fresco. Mantive os secretários de Estado, escolha já da Revolução; com uma excepção, Orlando de Carvalho, universitário de valor e cuja actuação no cargo fora digna de todo o louvor. Na verdade, não fazia sentido manter uma Secretaria de Estado para a Inovação, pois que inovar era missão do Ministro; e a nós tínhamos de chamar o Ensino Superior, o que levava a ter outro secretário para os graus básico e secundário - escolhemos Rui Grácio, nosso antigo aluno e amigo de sempre. Mas Rui Grácio seguia afinal orientação diferente da minha, e por isso as coisas não correram bem.

O Ministério funcionara, durante o marcelismo, sob forma centralizadora: o Gabinete é que distribuía as verbas e desempenhava tarefas que deviam ser da incumbência das direcções gerais Impunha-se por isso, corrigindo essa aberração, substituir os Directores Gerais, dada até a sua responsabilidade politica; o que foi o nosso primeiro acto ( para surpresa dos dirigentes sindicais - recebidos a seguir -, que iam dispostos a "impor-nos" tal medida ); nem sempre a nova escolha foi feliz, faltava gente preparada. O Gabinete era da nossa confiança - como Chefe Freitas Ferraz, e dois secretários, um dos quais Mega Ferreira.  Mas no pessoal  médio permaneciam infiltrações da situação precedente, que não renunciavam a levantar obstáculos à nova ordem. Todos os dias, misteriosos telefonemas de New York, que não me eram comunicados. A Comissão Mário Dionísio esbarrava com constantes obstáculos, que quase a impediram de funcionar - sanou-se a questão com a saída de quem estava apegado aos programas fascistas-clericais. A tipografia parece que foi utilizada para a impressão de documentos e propaganda de uma corrente política - de direita.; conseguiu-se desmascarar a tramóia, embora se preferisse não a divulgar, a fim de evitar eventuais perseguições. Fora de razões políticas, surgiam problemas delicados -por exemplo, de assédio sexual - de difícil punição, dada a cobertura de cumplicidades, voluntárias ou forçadas.

O Ministério e os órgãos centrais não estavam organizados para a missão que deles se devia exigir. Impunha-se informatizar a administração, e nesse sentido se nomeou um Secretário-geral com adequada formação - mas era tentativa prematura. iniciou-se o desmantelamento da monstruosa Junta Nacional de Educação, de funções heterogenias e de pesada burocracia. O sistema das Direcções Gerais funcionou bem, no conjunto. Quanto ao orçamento e contas, e à superintendência administrativa, beneficiaram da competência do Eng.º Prostes da Fonseca; além disso, quinzenalmente um funcionário das Finanças vinha verificar a marcha das coisas e dar indicações, em encontros também comigo. Aliás, com o Programa, apresentou-se em Conselho de Ministros o Orçamento. Com a cisão do Instituto para a Alta Cultura procurou-se melhorar o ensino de Português no estrangeiro e organizar em novos moldes a investigação científica. ( o que por então se não conseguiu, e depois seria abandonado, continuando-se com centros de organização obsoleta).

Em relação ao ensino básico e secundário, não se conseguiu vencer a demagogia e organizar a direcção das escolas de maneira a respeitar a necessária hierarquia e a garantir a disciplina (sem a qual não há ordem democrática). Aceitámos desde logo a co-educação, que se instalara de facto, mas que além de inevitável correspondia às nossas ideias. Por outro lado, a fim de adequarmos o ensino à directriz democrática e de um Estado laico, tomámos facultativa a disciplina de Religião e Moral; só passariam a frequentá-la os alunos cujos pais o requeressem (até aí, ao invés, podia-se apenas requerer a dispensa). Não se tratava de combater a religião - e a prova ficou dada com a defesa do seminário de Almada por nós ordenada e com o caso da Rádio Renascença e outros. A política foi explicada por nós ao Patriarcado. De formação francesa, tendo feito carreira em França, minha segunda pátria, entendi todavia que devia introduzir o estudo do inglês desde o Básico, deixando a opção entre as duas línguas á discrição dos interessados. Também esta orientação foi por nós explicada directamente ao Ministre de P Education Nafionale, por ocasião da nossa ida à UNESCO.

Pontos altos desta actuação ministerial ? Destacamos a reformulação dos programas e elaboração dos textos de apoio peia Comissão Mário Dionísio; a promulgação de normas para o ensino superior e a criação de Escolas Superiores, Faculdades e Institutos (em pequeno número, mas correspondendo a necessidade imperativas e a padrões de qualidade); e o reingresso de Portugal na UNESCO (com o discurso do Ministro na Assembleia geral, que levou à aprovação quase por unanimidade); mas procurámos também marcar presença no Conselho de Ministros e nos problemas políticos gerais, no sentido de construção da democracia.
Sobre esta acção governativa, documentos, entrevistas na televisão e a jornais, comunicados, reunidos em: ,4 Educação num Portugal em mudança, Lisboa,1975.


2. Durante o seu mandato, qual a visão de V. Exa. para o Sistema Educativo?

Tratando-se de Governos provisórios, não fazia sentido mexer no sistema educativo existente. Qualquer reforma, nesse campo, só poderia resultar de aturados estudos e ex­periências, e de uma governação no quadro da normalidade institucional Não significa isso que não tivéssemos a nossa concepção da organização de conjunto da instrução e educação, embora reticentes a deixarmo-nos espartilhar num "sistema". Por então, o que importava era detectar em que áreas se impunha criar escolas ou cursos, dado o interesse nacional - os imperativos de fomento da economia e actualização da cultura e alargamento da sua base social, bem como de formação da cidadania para a democra­cia. O edifício educacional carecia de alicerces: inexistência de rede de jardins de infância (salvo os que o Ministério dos Assuntos Sociais mantinha). Mas o Ministério da Educação não estava em condições de se lançar a esta tarefa - nem financeiras, nem de quadros nem de instalações. No outro extremo, carecíamos de seminários de após--graduação e de escolas de altos estudos, de cursos de profissionalização para licenciados. A ausência de carreiras de investigação somava-se à inexistência de uma rede de centros e institutos de pesquisa, em moldes modernos (ou mesmo antigos).Pensávamos em centros ou institutos inter-faculdades, alguns até inter-universítários (nacionais); por exemplo, um Centro de Economia e Sociologia Históricas, em ligação com as Faculdades de Ciências Humanas, de Economia, de Direito; possibilitar-se-ia assim uma boa biblioteca, apetrechamento com adequada tecnologia e pessoal auxiliar, encontro e colaboração de estudantes, investigadores, professores ( porque não um professor, ligado a um tal centro, para a mesma cadeira em duas ou três escolas? ) A fórmula de faculdades e departamentos parecia-nos aliás inadequada, devendo substituir-se por Áreas científico-culturais, com troncos comuns e interdisciplinaridade; cada núcleo de problematização confiado a um professor com assistentes e um pequeno grupo de investigadores. A escala nacional, um Instituto de História dos Descobrimentos e da Expansão - como Leiden tem, e escandalosamente o nosso país não tem. Quanto aos graus intermédios, não havia dúvidas que importava instituir o ensino técnico em cursos próprios a partir dos 15 anos, com duração de três anos, e o ensino superior politécnico (a exemplo, de certo modo, do Instituto Industrial e do instituto Comerciai ). Salvaguardando sempre a possibilidade de os bem preparados irem completar a formação à universidade.

O conjunto da instrução e educação deve ser traçado por uns quantos vectores. Antes de mais, cabe-lhe, com a família e depois o meio social, enquadrar o descimento físico e psíquico da criança, do adolescente e do jovem (não se limitar à ginástica). Tem de proporcionar a cada um a base cultural indispensável a viver na civilização actual -já não basta a alfabetização tradicional, nem mesmo a agora chamada alfabetização funcional. Mas todos têm de ser preparados para o trabalho, devem receber uma instrução profissional, contudo em vários níveis; o trabalho é mais do que uma necessidade social, deve ser encarado como uma dimensão fundamentai do humano. Esse trabalhador vai viver numa sociedade que tem uma organização política, desejamos que democrática. É pois para a cidadania que tem que estar formado; não basta a antiga educação cívica (melhor do que nada); essa formação tem de ser uma prática, inserida na comunidade que é a escola, prática essa que pode exercer-se numa associação de alunos ( estudantes).A sua participação na organização da comunidade escolar, crescente com a sucessiva passagem a outros graus de ensino, não pode porém atentar contra a autoridade do professor nem permitir aos alunos intervir em processos que são da alçada exclusiva dos professores (provas de docentes ou estagiários, determinação das matérias a estudar, forma e conteúdo dos exames, etc.). Mão se deve dispensar uma disciplina de Introdução à Política (focando a história e a geografia, dando a conhecer as correntes de pensamento, incitando à leitura de textos). O indivíduo, o ser social (cultural), o trabalhador, o cidadão. Acresce o conhecimento do património da pátria a que se pertence - o convívio com a sua literatura, a sua arte, as suas grandes realizações; e também o saber não apenas ler mas também falar e escrever com correcção a sua língua, ser capaz de a prezar. Não se trata de empanturrar os jovens com abstrusa "linguística" (muitas vezes desorientada aplicação da lógica), mas sim de dominarem a gramática ao seu nível do funcionamento efectivo desta ou daquela língua. Incitem-se os jovens a ler com agrado Fernão Lopes e Gil Vicente, Camões e Fernão Mendes Pinto, Garrett e Júlio Dinis, Eça de Queiroz e Camilo Pessanha, Aquilino Ribeiro - tantos mais. É mais importante do que saber redigir um requerimento ou lidar com "conceitos conceptuais" (sic).


3. Que reformas gostaria de ter promovido e não promoveu?

Em quatro meses não era possível realizar o programa apresentado, nem promover reformas sérias. Aliás, encontrávamo-nos em situação de "serviço de urgência" e o importante era incutir bom senso na massa estudantil, no corpo docente, pessoa! auxiliar e famílias de alunos ou estudantes. A acção no Ministério da Educação e no conjunto das escolas estava por demais dependente do clima político-social e da balança das forças que se movimentavam na vida pública. O que me espanta - sinceramente - é ter podido fazer alguma coisa. Regulou-se a organização das escolas superiores, definindo o âmbito de intervenção de cada corpo. Legalizou-se a criação da Faculdade de Ciências Médicas, em Lisboa, que só existia de facto (com o Ministro a assinar os cheques dos vencimentos aos professores) e aprovou-se a orgânica de estudos proposta pelos Professores Esperança Pina e Cordeiro Ferreira. Lançaram-se as bases para a criação da Escola Superior de Estomatologia (não existia nenhuma em Portugal) e do Instituto (Faculdade) de Biomédicas Abel Salazar, no Porto. Impulso ao ensino politécnico - instituto da Covilhã. Definição e bases para a Universidade de Aveiro (ciências de aplicação e altas tecnologias), estudo da criação de outras universidades e definição e bases respectivas - só havia comissões instaladoras sem missão definida. Aprovação e traçado de directrizes para a Universidade Nova de Lisboa - que deveria trazer a decisiva inovação da Área de Ciências Humanas e Sociais. Regulação (extremamente simplificada) da equivalência de títulos estrangeiros - ou melhor, passagem ao reconhecimento do valor desses títulos em Portugal (em muitos casos nada de equivalente existia entre nós). Reformulação dos programs dos ensinos básico e secundário. Reingresso de Portugal na UNESCO. A lista não fica por aqui.

Que gostaria de ter feito ? A normalização de todos os graus de ensino, acabando com a bagunçada - deram-se importantes passos mas não se conseguiu a plena normalidade - Criar a rede de jardins de infância - não houve condições sequer para começar. Criar o ensino técnico médio - a revolução "proletária" dos meninos bem não estava interessada no trabalho técnico -; desenvolver os institutos politécnicos sem que tivessem por fito passar a Faculdades, outorgar doutoramentos, espalhar títulos de licenciados. Desenvolver a prática da experimentação científica nos liceus (com a grande tição de Rómulo de Carvalho), e valorizar o estudo da Filosofia, da História e da Literatura, que tão desprezadas têm sido, e no entanto são essenciais à formação do homem integral Assentar a nível universitário a Área de Ciências Humanas e reformular os cursos de História e outros, tomar as universidades grandes áreas de investigação científica de alto nível (e não de mera acumulação erudita ou formação profissional); e irradiações de alta cultura, articulando-se aos problemas de fundo de Portugal. Traçar a carreira docente para o Básico e o Secundário (não concordamos com os cursos integrados de formação Pedagógica, que não fornecem base séria de conhecimento das matérias a ensinar): provas de admissão a estágio, estágio de dois anos (com prática de ensino orientada e formação teórica aprofundada); concurso para professor, com entrada para um quadro (embora os dois primeiros anos a título experimental); confirmação da categoria de docente; progressão na carreira pelo mérito (avaliação do desempenho, currículo de produção científica e pedagógico-didáctica, tendo em conta a obtenção de mestrados e doutoramentos, acção cultural). Extirpar a pedagogia da diversão - não estude, divirta-se -, e de que nem o professor tem de ensinar nem o aluno de aprender, não ter medo de fazer de escola um centro de trabalho - e onde se aprende a pensar. No ensino superior, exigência de mestrado para os assistentes, de doutoramento para os professores; apreciação do desempenho e provas científico-pedagógicas para a promoção em grau, a menos que o currículo seja considerado abonação suficiente. Para a coordenação geral da pesquisa científica ( nos vários ministérios e em organismos diversos, públicos e privados) e definição da política orientadora, uma Comissão ou Junta, presidida por um Alto Comissário, independente dos governos.


4. As reformas que na altura entendeu por bem promover depararam com que tipo de dificuldades?

A realização do programa governativo deparou com inúmeras dificuldades, a maioria das quais ligadas à situação caótica do país, à falta de autoridade do Estado, impreparação de quadros, imitação de modelos estrangeiros inadequados na acção política, incultura política levando a acções de destruição e desorganização (com recusa de hierarquias e de elites) e a exigências impacientes e absurdas, com falta de lucidez e de espírito de servir uma causa nobre. No Governo as nossas propostas e iniciativas foram sempre aprovadas, mas não nos foram dados os meios de realização. Os círculos estudantis não compreenderam qual o seu papel nas transformações que se impunham, e que ignoravam quais deviam ser, e as condutas manipuladoras ao serviço de minorias suscitaram um clima de confrontos, por vezes de extrema violência; faltou a consciência de que o trabalho é que seria a verdadeira alavanca para outra sociedade mais justa e de que era mais revolucionário estudar a sério do que manifestações de rua ou intermináveis assembleias falsamente plenárias e deliberativas em domínios fora da sua alçada. Houve, além disso, acções concertadas de sabotagem às medidas tomadas e de combate encapotado à política de democratização e à autêntica promoção do ensino e criação cultural. Já apontámos casos significativos de tal hostilização de professores, alguns com responsabilidades no antigo regime, agiram por vezes, até manipulando os estudantes, para se branquearem - enegrecendo os que não tinham sido colabo­racionistas; não se hesitou na delação nem na coacção física. Um catedrático pediu-me audiência: vinha denunciar quatro colegas; a quem acusava de contra-revolucionários; claro que o fiz sair mais depressa do que entrara. Quanto não tive que aturar a um reitor que, manejado por professor que sempre o acompanhava, telefonava a todas as horas a querer levar-me a assinar um despacho de demissão de um conceituado professor de Medicina; evidentemente, não conseguiu demover-me. Na oposição mantivera contactos com abalizado mestre que, embora colaborasse em realizações oficiais ao mais alto nível, se mostrava de ideias não conformistas; chamei-o a colaborar comigo; pois não é que se revelou uma toupeira de uma movimento muito avançado ? Um dos melhores cientistas portugueses, António Manuel Baptista, não pôde continuar na direcção do seu laboratório, deixou de ter condições para aí trabalhar (com grave prejuízo para a contribuição da física para a medicina), e viu-se forçado a emigrar para os Estados Unidos - uma nódoa para uma revolução que dizia vir derrubar o fascismo. Rodrigues Lapa, grande professor e investigador de notável contribuição para a história da literatura portuguesa e brasileira e para o conhecimento da língua portuguesa, perseguido pelo regime totalitário e por isso tendo emigrado para o Brasil, devia -elementar justiça - ser logo reintegrado no seu lugar de professor universitário; pois o processo arrastou-se por meses, e quando saímos ainda não estava plenamente concluído. Contraste com fascistas que continuaram sem ser inquietados sequer ou depois de uma estadia após 25 de Abril além Atlântico regressaram para serem grandes próceres da democracia. Autores de perseguições descartaram-se atirando as culpas para o ditador - não lhes convinha assumir as responsabilidades que eram as suas.

     
5. Quais as mudanças significativas que se verificaram durante o mandato de V. Exa.?

As mudanças significativas que se deram durante o nosso mandato já foram assinaladas atrás, a propósito das perguntas 2 e 3.

     
6. Que outro ou outros temas, não contemplados nas perguntas anteriores, gostaria de abordar ?

Conviria seguir a evolução posterior das situações e problemas - o que em parte fizemos no n° 3 -, e detectar como se apresentam hoje e quais as perspectivas para o futuro num Portugal que mudou em muito, nem sempre no sentido que desejaríamos. Destaquemos tão só dois ou três pontos.

Consideramos a adesão ao chamado processo de Bolonha um erro que se impõe corrigir. A dança da duração dos cursos e da divisão em ciclos não faz sentido. A formação em Medicina não pode ter a mesma duração nem as mesmas características que a formação em Economia ou Engenharia ou História. Cada qual deve ter o seu percurso próprio, exige estágios ou formações complementares sui generis. Numa determinada área, por exemplo a História, a formação pode - e deve, fazer-se segundo dois ou mais moldes. Assim, teremos um curso com cadeiras relativas a períodos sucessivos, e em relação ao mesmo período cadeiras cada qual de ângulo diverso: por exemplo, quanto aos séculos XV-XVUJ, a História económica e Social, a História política e das instituições, a História da cultura, a História dos descobrimentos e da expansão, a História de Portugal II. Nesta construção entram outras cadeiras de índole diferente - nomeadamente Teoria e metodologia das fontes. Por outro lado, uma formação integrada nas Ciências Humanas: a partir de um tronco comum, Economia e Sociologia históricas, Antropologia histórica, Sociologia política, História das ideias, Sociologia histórica da cultura. Psicologia histórica. Contrariemos a obsessão da homo­geneização - há toda a vantagem na diversidade das escolas e dos cursos universitários. Lembremos a riqueza cultural e a ampla contribuição à pesquisa de instituições como a Ecole Pratique des Hautes Etudes, a École des Chartes, a Ecole des Sciences Politiques, a London School of Economics, a School of African and Oriental Studies, os Institutos de Estudos Avançados. Seria uma perda irreparável enfiá-las nos mesmos coletes de forças. A duração da frequência variará necessariamente consoante o organigrama e a forma de trabalho. Dir-se-á que, assim sendo, se gera a confusão quanto aos títulos, que deixam de ser equivalentes. Não vemos vantagem nessa equivalência; o que é relevante é que o valor dos títulos - diversos - seja reconhecido em toda a União Europeia. Reconhecimento que dependerá do prestígio conquistado por cada escola ou curso.

Pretende-se a homogeneidade dos cursos a fim de favorecer a mobilidade estudantil. Aconselham-se os estudantes a ir, a meio dos seus cursos ou no final, frequentar escolas no estrangeiro, para se abrirem a outras perspectivas, consolidar a sua preparação com outras formas de trabalho. Objectivos contraditórios. Interromper o curso para estadias curtas noutras instituições parece-nos antes prejudicar uma preparação sólida - e redundante, se não forem deparar-se com outros métodos, ideias, problemas. Se houver esta mudança, não estão certamente em condições de a aproveitar (e não se esqueça a adaptação a um meio diferente, até no seu quotidiano ). Preconizamos que vão lá fora tirar certos cursos, se abrem frequentar instituições de melhor qualidade ou mais adequadas à formação pretendida. Assim, quem queira formar-se em língua e literatura alemã ou inglesa tem vantagem em o fazer em universidade da respectiva nacionalidade. Quem já tenha uma licenciatura (no sentido tradicional da designação) pode progredir mais se for frequentar escola especializada ou curso de após graduação em universidade prestigiada. Empurrar os estudantes do ensino superior a andarem mim rodopio, tememos que baixe o nível das instituições e resulte em perda de tempo e dinheiro.

O Acordo de Bolonha incita as instituições de ensino superior a adoptarem métodos de leccionação que não os convencionais, passando a basear-se na iniciativa e actividade dos discentes. Acabar com as aulas magistrais, levar os estudantes a trabalhar em grupos, estimulá-los a descobrir os problemas que importa resolver e a idear as hipóteses, apoiando-se na experimentação e na demonstração. Louváveis intenções -mas serão inteiramente razoáveis ? A pesquisa científica e a criação cultural exigem uma bagagem de conhecimentos que se tem de aprender, e para isso seguir as lições de mestres, e exige a prática quer laboratorial quer de resolução de problemas matemáticos (ou outros) que supõem meses de automatização. Nada disto pode ser substituído pela informática, instrumento todavia indispensável. Há que aprender a fazer fichas (não basta dispor de um programa já feito), saber seleccionar uma bibliografia (não basta ir à Internet buscar intermináveis listas). As chamadas aulas magistrais continuam a ser insubstituíveis, embora possam e devam ser completadas por sessões onde se apresentem duvidas, dêem esclarecimentos, se discutam ideias. Por outro lado, sessões de trabalho, se necessário com computadores, manuseando e analisando fontes, caso se trate de História ou outras ciências humanas, quer se preparem inquéritos e entrevistas, se problematize e avancem hipóteses. Temos de admitir a diversidade, consoante a personalidade do mestre, as capacidades e preparação dos estudantes.
Falámos da leccionação no ensino superior. No Secundário e até no Básico instalou-se o mito da criatividade. Acha-se que a débil atenção dos alunos não suporta a exposição feita pelo professor, e que aliás não estão na escola para aprender mas sim para realizarem as suas capacidades criativas. Dispensou-se a memorização da tabuada ou das regras da gramática, como das datas mais importantes da história de Portugal. E de modo geral receia-se que recorrer à memória afecte os frágeis cérebros infantis ou juvenis. Ora memorizar não é acto mecânico e resposta cega a uma dificuldade; é acto de inteligência, requer arte no seu manejo, selecção do que se memoriza; um software (mental) bem organizado é que permite um trabalho intelectual eficaz. Não se confunda com a prática antiga de aprender de cor numerosos conhecimentos* para depois os debitar a fim de mostrar que se sabe, É um tremendo equivoco designar a nossa civilização por "sociedade do conhecimento": todas as sociedades - até as tribos de caçadores e recolectores do paleolítico - assentaram o seu modo de viver na acumulação de conhecimentos. Estes são apenas instrumentos para o trabalho intelectual.

Nos anos 20 do século passado, em boa parte suscitada pela obra de John Dewey Como pensar, elaborou-se a pedagogia por projectos, que bem se inseria nas preocupações da escola activa. Recentemente ressuscitaram os ^projectos", criando-se disciplina com esse título. Outro equívoco. Pensar é problematização, elaboração de hipóteses, deduções, verificações (ou "falsificações", segundo uma ideia justa de Karl Popper). Essa formulação de problemas e a marcha subsequente enquadram-se em projectos, e um ensino adequado deve levar os discentes a delinearem projectos e depois a realizá-los graças ao pensamento logicamente articulado. Não deve tratar-se de ensino â parte, mas de método a utilizar, sempre que o ensejo surja, nas diferentes áreas do conhecer. Como se adivinha, os projectos tendem a ser inter-disciplinares, e naturalmente devem ser assumidos por grupos; mas não como actividades separadas. E no sentido que lhes damos, afiguram-se-nos de grande impacto educacional. Aliás, nas escolas secundárias portuguesas têm surgido realizações de projectos que têm merecido até aplauso internacional.

Nesta época de espalhada confusão, tende a enraizar-se a ideia de que o grande progresso na actividade criativa virá de cada aluno dispor de computador, e de as sessões (não ousamos dizer: de aprendizagem, nem sequer de trabalho) se desenrolarem em diálogo entre os alunos e estes e o professor através do computador. Julga-se que assim teremos uma escola activa. Nada mais errado. As crianças e os jovens, para se desenvolverem, têm de agir em meio social e com a realidade física da presença dos outros. Insistamos neste ponto: estar frente a frente com os colegas e o mestre (como com os pais e os amigos) é completamente diferente de lhes falarmos ao telefone ou pela Internet. E se pela Internet se pode aprender muito, nada substitui o contacto com as árvores e os campos, com os animais e as pessoas; o excesso de uso do écran cria o artifício da "realidade virtual" e a reticência a mover-se no mundo real - os jogos de computador não substituem o jogar à bola num campo, o nadar no mar, o andar de bícicleta, o guiar um automóvel na estrada. O fascínio do ambiente virtual e o receio do meio físico estão a tornar-se doentios, e a violência surge porque não se está afeito a lidar com a presença corpórea dos demais (as expressões do rosto, os gestos das mãos...).

Está na moda o que, por ignorância do português, se chama horrorosamente o ranking das escolas, global ou por disciplinas. Alias, multiplicam-se os rankings de tudo, dos de os tenistas às universidades, dos restaurantes aos jogadores de futebol. Até se quis fazer o ranking dos Grandes Portugueses ( na Grã Bretanha e em França já se fizera). Parece-nos mais sensato abdicar de tal propósito, que não conduz a nada de ver­dadeiramente importante, e pode causar estragos. Pois até há quem pretenda que os pais escolham as escolas para os filhos segundo tal classificação! E qual a situação das escolas chutadas para o final de tabela - quantas vezes por se localizarem em serranias de difícil acesso mais ou menos esquecidas, e a que falta tanto para poderem funcionar com eficiência ?. Quanto ao ensino superior, fala-se de comissões de avaliação, compostas de elementos externos, preferentemente estrangeiros. E claro que os estrangeiros encarregadas dessas visitações (como antigamente os eclesiásticos aos conventos) nada sabem, salvo excepções, da realidade nacional, e não conhecem a razão de ser de certos cursos ou formas de organização, nem a capacidade efectiva dos professores - não é pelo número de separatas ou pelo número das citações de seus trabalhos que podem ser avaliados. As comissões que têm funcionado duvidamos que estivessem compostas de modo a assegurar uma apreciação consciente e válida. Reconheça-se que a avaliação encerra uma contradição: se pelos elementos internos a uma instituição ou pelo menos do mesmo ramo, há o escolho do compadrio; se por elementos exteriores, estes não estão muitas vezes em condições de compreender o que se passa.

Mas quer em relação ao Básico e Secundário, quer ao Superior, não faz sentido fazer entrar os pais ou encarregados de educação no processo de avaliação dos alunos, nem admitir os interesses económicos (locais ou de âmbito mais vasto), nem as autarquias, no governo das escolas. No primeiro caso, há que atender a que a esmagadora maioria das famílias não tem preparação cultural para se pronunciar. No segundo, a escola não pode tornar-se instrumento de interesses privados, é ao seu corpo docente que cabe inseri-la na realidade local, regional ou nacional. De colaboração com o Ministério. E urgente que se instituam comissões (compostas por indivíduos competentes em sociologia, história, estatística, economia, etc.) que analisem a realidade nacional e detectem quais as necessidades de formação nas diferentes profissões e actividades -médico, engenheiros , magistrados, electricistas, canalizadores...Uma Faculdade de Medicina pode, e deve, calcular quantos médicos está em condições de formar - mas há que saber, por outro lado, de quantos é que o país precisa. Todo o planeamento deve atender a estas variáveis.

Não vamos abordar outras questões, que bem o mereciam. Limitar-nos-emos a indi­car dois trabalhos, embora com passagens que mereceriam actualização:

   As Ciências Humanas: Ensino Superior e investigação científica em Portugal. Lisboa, 1981.

   Problemas da Institucionalização das Ciências Sociais e Humanas em Portugal Lisboa, Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 1989.

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